A
biografia-ficção ‘Heleno, o Príncipe Maldito’ é uma daquelas
boas ideias que têm potencial apenas superficialmente aproveitado
pelo cinema brasileiro, sempre às voltas com problemas de roteiro,
ritmo, diálogos e montagem.
O
personagem e sua história são muito interessantes, mas o filme, de
R$ 8,5 milhões, não nos permite mergulhar junto com o astro do
Botafogo na sua tragédia pessoal, contraponto de uma carreira curta
e tumultuada, mas em grande parte gloriosa.
Apesar
de algumas cenas fortes, a película nos mantém à distância a
maior parte do tempo, embora não por intenção dos realizadores,
mas por inabilidade mesmo. Privados do auto-engano a que chamamos de
suspensão temporária da verdade, nem a incrível transformação de
Rodrigo Santoro no Heleno decadente nos põe dentro
do
filme, deixando a suspeita de que o diretor igualmente ficou de fora.
Talvez alguém menos conhecido nos livrasse da constatação
periódica de que estamos vendo o nosso premiado ator - e não o
dândi controvertido da era anterior a Pelé. A montagem coopera para
nos distanciar emocionalmente da história, já que as idas e vindas
roubam muito do suspense, ainda que tratemos de fatos de conhecimento
público.
O
efeito pretendido com a escolha do preto e branco até ajuda a criar
o clima de volta ao passado, e funciona bem como metalinguagem, já
que o trecho mais importante da trajetória de Heleno se desenvolveu
no alvinegro de General Severiano. Ainda assim, é pouco para um
filme que pretende nos apresentar a vida daquele que é considerado o
primeiro craque-problema do futebol brasileiro.
Falta
um pano de fundo, informações sobre o ambiente familiar de Heleno,
e o que ocorreu até o jogador, galã e fumante compulsivo, ser
flagrado pelas câmeras do diretor José Henrique Fonseca em cenas de
amor com belas mulheres e lenços empapados de éter. Ele então já
apresentava os primeiros sintomas da sífilis que, na vida real, o
mataria em 1959.
Para
não deixar o espectador totalmente perdido, há um telefonema da mãe
cobrando a escolha de “uma boa esposa” e a lembrança de uma
canção de ninar. Essa recordação está, aliás, sujeita a duas
interpretações cruciais: anteciparia o destino do filho ou fundaria
seu caráter. É nesse ponto que o roteiro, ou sua execução,
embolam o meio de campo, ao cruzar perigosamente a linha entre
realidade e ficção.
Heleno,
o personagem, relembra que o pai costumava embalá-lo ao som de
Nature Boy, composta por Eden Ahbez e publicada em 1947. Teria sido
um achado, mas a saída para explicar o explosivo temperamento do
biografado falha quando nos damos conta de que o ídolo nasceu em
1920. Assim, provavelmente foi ninado até os cinco, seis anos. Não
há contemporaneidade alguma entre a infância de Heleno e o
surgimento da canção – até para justificar uma liberdade
poética.
Além
disso, o recurso mostra-se frágil porque a música irrompe de forma
descontextualizada , como uma senha para iniciados. É um desses
cacos tão ao gosto de cineastas ávidos por firulas e pouco
dispostos ao que é básico para um resultado convincente entre as
quatro linhas da tela de projeção.
Mesmo
tendo sido gravada por Caetano Veloso no álbum Totalmente Demais Ao
Vivo, e numa versão em Português por Ney Matogrosso, Nature Boy não
é exatamente conhecida de um público mais amplo, que teria de
entender a menção a um ‘strange, enchanted boy’ (rapaz estranho
e encantador).
O
que parece é que o diretor buscou identificar o caráter autêntico
do personagem da música à bravura indômita do jogador. Ocorre que
o nature
boy da
canção é tímido, sossegado e prega como valor essencial da vida o
dar e receber amor. Heleno era um ególatra agressivo e buscava, na
visão expressa pelo roteiro, apenas receber amor. O máximo que dava
era prazer sexual.
A
canção é utilizada inclusive como o mote de uma entrevista
subhollywoodiana, que não se sabe se ocorreu de verdade, na qual o
jogador fala pouco do esporte que o notabilizara, e sim de suas
extravagâncias, pedindo ao final para cantar ele próprio a música.
Essa sequência tem ainda outra derrapagem forte, provocada pela
locução pouco convincente do entrevistador, que não sustenta a
emissão gutural típica dos anos 40/50.
Outra
fraqueza do filme é percorrer os descaminhos de Heleno por um
submundo emocional de aventuras amorosas e consumo de drogas,
tangenciando a carreira futebolística, e desta omitindo informações
importantes. Restam aquelas breves cenas de jogos e treinos, que não
dão a mais pálida ideia do que transformou Heleno em personagem de
um filme milionário. Sem o brilhantismo e a genialidade em campo,
ele seria mais um playboy flanando pela praias do Rio.
É
claro que enveredar pela degradação moral e física do ídolo
evitou o complicado, mas necessário, trabalho de pesquisa e produção
na seara do futebol. A saída? Inflar o filme com cenas de um
viciado, relegando seu gênio como jogador – quem sabe a única
virtude de Heleno – praticamente a meras afirmações no correr dos
diálogos.
Em
suma, José Henrique Fonseca teve uma boa oportunidade para marcar,
mas chutou na trave.
Links relacionados: http://www.metrolyrics.com/nature-boy-lyrics-nat-king-cole.html