A propósito da minha já batida afirmação de que a vida humana gira em torno de poder – ainda que talvez isso fosse condenável – recebi de duas amigas respostas diferentes. A primeira me disse:
“Creio que um dos maiores questionamentos do homem é... Qual o sentido da vida?
O poder, bem como o capital, fornecem a falsa sensação de sentido e por isso tantas vidas humanas giram em torno deles...”
E completou, comentando minha afirmação poética de que “mesmo a mais ingênua das flores busca impressionar com suas cores e perfumes, em busca de um lugar na natureza”:
“Bonita a visão da ingênua flor que impressiona.. cada um tem o seu lugar ao sol.... já essas "capacidades" políticas tem lugar ao sol e à sombra.. rs..”Da outra amiga recebi uma carinhosa reprimenda e um trecho de um texto de Eckart Tolle:
“Para sobreviver, o ego precisa de uma grande quantidade de atenção. Ele é viciado em poder, reconhecimento e conflito e se ocupa de comparar a si mesmo com outros egos. Ele se vê separado dos outros e do mundo. Pensa em termos de “melhor que”, “menos que” e “maior que” e vive pela graça do ataque e defesa. Tolle diz: “Os egos diferem apenas no exterior. No fundo, são todos iguais. Vivem na identificação e separação. Todo ego luta continuamente para sobreviver, tentando se proteger e se expandir. Como quer que o ego se manifeste, a força motriz oculta por trás dele é sempre a mesma: a necessidade de se diferenciar, de ser especial, de ser o patrão; a necessidade de poder, de atenção, de mais. E, é claro, a necessidade de uma sensação de separação, isto é, de oposição, de inimigos.” À primeira repliquei:
“Ainda bem que você aspeou "capacidades" porque o sentido da palavra era justamente irônico. Todos os dias vemos tais capacidades por um fio.
Essa discussão me lembrou aquele desabafo de Vinícius de Moraes, que dizia lamentar ter um dia deixado a Gávea, o bairro onde nascera, e não ser apenas "príncipe do meu próprio reino", nas palavras dele.
O nosso extraordinário poeta falou, a meu ver, com a ingenuidade da flor, porque a vida o empurrou da Gávea para Botafogo, de Botafogo para Chelsea (em Londres), de volta para o Rio em bairros que desconheço, em seguida para Beverly Hills (Los Angeles) e de volta para outros bairros do Rio, principalmente Ipanema, ao sabor dos amores, dos casamentos, das canções e dos porres. Vinícius morou ainda em Itapoã (Salvador) e , se não me engano, em algum barrio de Buenos Aires. Não conseguiu voltar para a Gávea, até onde eu sei, e nem ser príncipe de seu próprio reino.
Ora, ele, é claro, intuía que o maior poder está em nos livrarmos da tentação das lutas pelo grande poder e termos a satisfação de dominarmos aspectos da nossa vida que permitam o surgimento de nossas melhores, mais plenas e mais profundas capacidades. No entanto, lutamos pela cidade, pelo mundo, e quando olhamos em volta, estamos circunscritos a bairros físicos e de outras naturezas, mas nunca o bairro original, para quem ousou pôr os pés no mundo.
Os percalços do poetinha tinham outro ingrediente que, a meu ver, permeia igualmente a luta pelo poder: seu desejo de voltar ao seio materno (de onde jamais deveria ter saído???). Desafiados pela hostilidade do ambiente e pela quantidade enorme de trabalho a ser feito em prol da civilização, nós debatemos entre a nostalgia de um conforto impossível e o dilaceramento de tudo que nos possa impedir o sonho de recuperá-lo. Poder, poder, poder. Ao recusar a luta política formal (traduzida apenas em manifestação artística), Vinícius recuperou o sonho do seio materno na ilusão/desilusão momentânea de cada amor, o que acabou beneficiando o nosso repertório e a nossa identidade cultural.
Sem querer projetar nostalgias para o futuro, ainda demorará até que possamos ser apenas flores ao sol. E isso implicará, sem dúvida alguma, e muito infelizmente, luta política.”
À segunda e em alusão específica ao texto de Tolle, respondi:
“Perfeito.
A coisa [o ego] se desenvolveu assim mesmo e penso que foi de propósito - não como uma anomalia.
A anomalia, a meu ver é o egocentrismo ou o egoísmo.
A reeducação do ego deve ser a de torná-lo mais individual, sem, contudo, esmagar outros egos.”
Tomara que eu tenha comunicado a essas adoráveis criaturas o que penso da maneira mais próxima do que penso. E o que eu penso é que não há como fugir do ego porque ele é da nossa constituição mesma. Ele é fruto de um lento processo evolutivo e tem sua função, sua razão de ser. Se está sujeito a disfunção ou distorção, é porque tudo o mais na natureza e no mundo da cultura está.
Acredito que a missão do indivíduo (se é que existe) é estabelecer uma marca, qualquer que seja e de que amplitude for. O indivíduo que não se indiferencia do todo indeterminado e não estabelece um sentido próprio, único, para o mundo, não se individualiza, se me permitem essa tautologia.
Agora, parece haver na ânsia de dissolução do ego uma expectativa do tipo religiosa, como uma fuga para um mundo sem conflitos. E essas expectativas perpassam diversas religiões e crenças, como o cristianismo e o hinduísmo.
O problema com algumas filosofias hinduístas, por exemplo, é que pregam a dissolução do ego por meio do ato sexual, quando isso é função precípua do envelhecimento e da morte. Só uma orientação feminina da sexualidade, com enormes repercussões na estrutura de poder, seria capaz de conceber que a natureza criou bilhões de neurônios para serem dissolvidos no êxtase.
O que faz da vida humana um drama é que, para sobrevivermos, somos obrigados a desenvolver um ego e aprender a amá-lo, para depois um dia sermos obrigados a abrirmos mão dele. E o pior é que a certeza de que um dia nos desfaremos, nos desfazendo do nosso ego, nos acompanha todo dia numa espécie de sofrimento antecipado. Como antídoto para esse mal, há em todas as crenças exercícios de desprendimento e entrega, cuja eficácia, porém, é sempre parcial. Mais dia menos dia, o ego está sempre batendo à nossa consciência para nos alertar de sua incômoda presença, que equivale, paradoxalmente, à sensação de estarmos vivos.
Se inevitabilidade do ego, por outro lado, não deve lhe dar poderes extremos, o poder, em si, deve ser um elixir, aos invés de se transformar em veneno. A nossa ideia de poder é ainda antiquada, pouco mais que um verniz sobre o comportamento de primatas. Até mesmo um compositor com pretensões humanistas como Bob Dylan escreveu uma canção conformista afirmando que "Você tem [sempre] de servir alguém / Pode ser o diabo ou pode ser Deus / mas você tem de servir alguém". No original: "You're gonna have to serve somebody, yes indeed / You’re gonna have to serve somebody / Well, it may be the devil or it may be the Lord / But you’re gonna have to serve somebody".
Gênio dos timbres e das inflexões, pregador blasfemo, Dylan é bíblico em quase tudo, e eis porque sua noção de poder está equivocadamente impregnada dessa obrigatoriedade de um servir submisso. Ainda estamos às voltas com as velhas formas de humilhação latentes e patentes nas expressõe do tipo "ferrar alguém" ou "sentar no colo do chefe". A ameaça de curra do macho alfa é o que ainda determina a configuração das nossas estruturas de poder, a despeito dos avanços institucionais e culturais e de rebeliões cosméticas como a da atual onda da "diversidade".
Atormentados por essas demandas, entregamos nossas vidas a cavar espaço nas fileiras dos medrosos e dos puxa-sacos. É o senso de colocação nessas estruturas que definem o que vamos comer, beber, ler, ouvir, falar e até a quem vamos amar.
Antes eu pensava que qualquer projeto de poder que se prezasse teria de ser para a vida toda e ter esse viés formal,a chancela dos modelos tidos como vencedores. Hoje vejo que o poder desejável situa-se no limite do significado da própria palavra "poder": a possibilidade de se fazer qualquer coisa, de preferência boa, em qualquer, tempo, em qualquer lugar, independentemente de cargo ou mandato.
Mas vejo tudo isso sob um ponto de vista político, político no sentido amplo, ao ponto de não acreditar em amor que não esteja liberto da noção do poder como serviço submisso. O amor deve ser um serviço entre pessoas livres, livres a ponto de se compreenderem.Quando se chega à compreensão, cessa o poder. Ou melhor, o poder torna-se pleno, para dois ou mais.
A "ingênua flor" do início desse artigo é uma dessas pessoas que me fazem sonhar com um amor não submisso, mas no qual um ego pode reconhecer com apaixonada serenidade a grandeza do outro, mesmo que o sentimento, na sua gênese, carregue a essência do fetiche e um poeta possa declarar: "Que prazer o meu / Tocar um objeto teu / À mercê estou / De um eu mais forte do que eu".
Ótimo complemento ao texto de Tolle.
ResponderExcluirO ego não deve ser destruído, mas administrado.
"Como quer que o ego se manifeste, a força motriz oculta por trás dele é sempre a mesma: a necessidade de se diferenciar, de ser especial, de ser o patrão; a necessidade de poder, de atenção, de mais."
Uma leitura rápida dessa afirmação poderia nos encher de culpa, mas nada mais é do que uma constatação apenas.
Quem julga o sentido de patrão é quem lê, viciado por arquétipos negativos do patrão.
Afinal que problema há em ser patrão? Em ter poder? Nem sempre o poder está atrelado à tirania.
Grato pelo comentário, Paula. Acabei de postar uma nova versão, se não é abusar muito da paciência dos amigos.
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