Uma interessante resenha de Luis Fernando Veríssimo (abaixo) põe em contraste os mitos de Édipo e Jesus, mas mantem no ar a estranheza do estudioso Kalman Kaplan sobre a opção de Freud pelo mito grego, uma vez que o mito judaico-cristão estaria mais perto culturalmente do pai da Psicanálise.
Nós é que poderíamos estranhar a estranheza de Kaplan. Foi o destemor de Freud e sua ânsia pela verdade que o levaram a preferir o mito grego - se é que ele chegou a ficar dividido entre duas alternativas. Édipo oferece uma oportunidade de decifração e aproximação da verdade, ao invés de induzir o homem a uma perspectiva de salvação no plano metafísico que o impede de enfrentar seu destino nesta terra.
A crônica do Veríssimo publicada no site do Globo Online:
Nós é que poderíamos estranhar a estranheza de Kaplan. Foi o destemor de Freud e sua ânsia pela verdade que o levaram a preferir o mito grego - se é que ele chegou a ficar dividido entre duas alternativas. Édipo oferece uma oportunidade de decifração e aproximação da verdade, ao invés de induzir o homem a uma perspectiva de salvação no plano metafísico que o impede de enfrentar seu destino nesta terra.
A crônica do Veríssimo publicada no site do Globo Online:
"Isaac e Edipo
Kalman J. Kaplan ensina nas universidades americanas de Wayne State e Illinois. Tem escrito sobre paralelos bíblicos para os mitos gregos e publicou uma comparação das histórias de Isaac e Édipo, duas versões para o drama familiar que, segundo a ortodoxia freudiana, está na origem da civilização e das suas neuroses. Isaac era o filho amado que Deus mandou Abraão imolar, Édipo o filho enjeitado condenado cumprir a profecia feita a seu pai de que um filho o mataria.
São duas figuras igualmente sacrificiais e expiatórias, e Kaplan estranha que Freud, mesmo sendo um judeu secular, não tenha preferido o exemplo bíblico ao grego para a sua tese sobre o conflito mais antigo da humanidade.
O que diferencia Isaac de Édipo é a natureza do sacrifício e a consequência da expiação de cada um. Deus poupa Isaac da imolação e pai e filho chegam a um acordo que, no fim, é o acordo inaugural do judaísmo. Os terrores do filho diante do pai são atenuados pela sua ritualização - como a circuncisão, que é uma castração simbólica - e o terror do pai diante do filho é transferido: a vinda do Messias, o filho que sustará ele mesmo a faca imoladora e desafiará o pai, fica para um futuro indefinido.
Já Édipo cumpre a sua danação. Mata o pai, ganha as glórias passageiras do reino de Tebas e da cama da mãe, mas é derrotado pelo remorso. Sucumbe ao destino reincidente de todo homem e inaugura não uma religião mas um complexo.
O Jesus das escrituras tem muitos precedentes em mitos da antiguidade, heróis expiatórios de outras culturas cujo martírio precede a ressurreição e voltam dos seus abismos e das suas provações como líderes ou deuses A especulação, hoje disputada, de Freud era que todos os mitos de redenção tinham origem na revolta dos filhos rebeldes contra o pai tirano, nas hordas primitivas.
Os filhos matavam e comiam o pai e aplacavam o remorso, o medo de serem literalmente comidos por dentro em retribuição, designando um dos seus como o culpado, sacralizando o crime e o criminoso e imolando o irmão/herói numa oferenda ao pai vingativo. Os mitos judaicos e os mitos gregos substituiam o monomito primevo de formas diversas, mesmo que os dois mitos fossem essencialmente os mesmos.
A história de Isaac é um mito de conciliação, a de Édipo um mito de recorrência trágica. As duas buscam a superação do conflito pai x filhos, a de Isaac pela integração sob os olhos de Jeová - nas palavras do profeta Malaquias, “e converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” - a de Édipo pela resignação aos ciclos da condição humana, inegociáveis, pelo menos até que venha a psicanálise.
Já a tradição messiânica dá no Cristo, cujo triunfo histórico se deve ao seu ineditismo. No mito cristão o filho confronta o pai, mas filho e pai são a mesma coisa. O pai não mata o filho, o filho é imolado em oferenda a si mesmo. E é a carne do irmão/herói, não a do pai, que os irmãos comem, simbolicamente, na eucaristia, subvertendo o rito primevo enquanto o repetem.
E o mito cristão não é cíclico. Ele rompe a reincidência protelatória do mito judaico e a dos eternos retornos do mito grego. Seu herói venceu, expiou a culpa coletiva transformando-se por nós no seu próprio pai sem precisar matá-lo, e em vez de um acordo como o de Isaac com Abrahão com a benção de Jeová ou a submissão a um destino trágico como a de Édipo, trouxe uma novidade que nenhum mito, antes, oferecera: a salvação."
Kalman J. Kaplan ensina nas universidades americanas de Wayne State e Illinois. Tem escrito sobre paralelos bíblicos para os mitos gregos e publicou uma comparação das histórias de Isaac e Édipo, duas versões para o drama familiar que, segundo a ortodoxia freudiana, está na origem da civilização e das suas neuroses. Isaac era o filho amado que Deus mandou Abraão imolar, Édipo o filho enjeitado condenado cumprir a profecia feita a seu pai de que um filho o mataria.
São duas figuras igualmente sacrificiais e expiatórias, e Kaplan estranha que Freud, mesmo sendo um judeu secular, não tenha preferido o exemplo bíblico ao grego para a sua tese sobre o conflito mais antigo da humanidade.
O que diferencia Isaac de Édipo é a natureza do sacrifício e a consequência da expiação de cada um. Deus poupa Isaac da imolação e pai e filho chegam a um acordo que, no fim, é o acordo inaugural do judaísmo. Os terrores do filho diante do pai são atenuados pela sua ritualização - como a circuncisão, que é uma castração simbólica - e o terror do pai diante do filho é transferido: a vinda do Messias, o filho que sustará ele mesmo a faca imoladora e desafiará o pai, fica para um futuro indefinido.
Já Édipo cumpre a sua danação. Mata o pai, ganha as glórias passageiras do reino de Tebas e da cama da mãe, mas é derrotado pelo remorso. Sucumbe ao destino reincidente de todo homem e inaugura não uma religião mas um complexo.
O Jesus das escrituras tem muitos precedentes em mitos da antiguidade, heróis expiatórios de outras culturas cujo martírio precede a ressurreição e voltam dos seus abismos e das suas provações como líderes ou deuses A especulação, hoje disputada, de Freud era que todos os mitos de redenção tinham origem na revolta dos filhos rebeldes contra o pai tirano, nas hordas primitivas.
Os filhos matavam e comiam o pai e aplacavam o remorso, o medo de serem literalmente comidos por dentro em retribuição, designando um dos seus como o culpado, sacralizando o crime e o criminoso e imolando o irmão/herói numa oferenda ao pai vingativo. Os mitos judaicos e os mitos gregos substituiam o monomito primevo de formas diversas, mesmo que os dois mitos fossem essencialmente os mesmos.
A história de Isaac é um mito de conciliação, a de Édipo um mito de recorrência trágica. As duas buscam a superação do conflito pai x filhos, a de Isaac pela integração sob os olhos de Jeová - nas palavras do profeta Malaquias, “e converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” - a de Édipo pela resignação aos ciclos da condição humana, inegociáveis, pelo menos até que venha a psicanálise.
Já a tradição messiânica dá no Cristo, cujo triunfo histórico se deve ao seu ineditismo. No mito cristão o filho confronta o pai, mas filho e pai são a mesma coisa. O pai não mata o filho, o filho é imolado em oferenda a si mesmo. E é a carne do irmão/herói, não a do pai, que os irmãos comem, simbolicamente, na eucaristia, subvertendo o rito primevo enquanto o repetem.
E o mito cristão não é cíclico. Ele rompe a reincidência protelatória do mito judaico e a dos eternos retornos do mito grego. Seu herói venceu, expiou a culpa coletiva transformando-se por nós no seu próprio pai sem precisar matá-lo, e em vez de um acordo como o de Isaac com Abrahão com a benção de Jeová ou a submissão a um destino trágico como a de Édipo, trouxe uma novidade que nenhum mito, antes, oferecera: a salvação."
Recadinho carinhoso enviado por e-mail pela Lídia:
ResponderExcluir"Nelsinho,
seu blog está cada vez mais instigante,
provocador....estou amando.
beijos saudosos,"
Grato, Lídia. Beijão!
Muito boa a resenha do Luís Fernando Veríssimo e, faço minhas as palavras elogiosas da Lídia no comentário anterior.
ResponderExcluirNa minha opinião, Freud escolheu os mitos gregos ao invés dos judaico-cristãos pela razão de que, mesmo pairando diáfanos no Olimpo, os deuses e deusas gregas eram arrebatadoramente humanos! Entre eles não existia moral, ética, pudor, ou seja, o inconsciente dava regras em parceria com os instintos básicos. Já nos mitos judaico-cristãos existe um certo "controle" ou "censura", fruto dos dogmas próprios das religiões.
Édipo apaixona-se e transa com a própria mãe. Vênus/Afrodite é casada com Hefesto mas tem uma penca de amantes, dentre eles o mais famoso, Ares/Marte. Entretanto, continua sendo a deusa da beleza e não sofre nenhuma "punição". Hermes/Mercúrio afana todo o rebanho de Apolo que fica furioso mas, o esperto meliante faz das tripas dos ruminantes o primeiro instrumento musical (uma harpa) e presenteia Apolo, ou seja, o poder da barganha vence o rígido esquema "crime x castigo". Por isto, acredito que Freud, como pesquisador e cientista destituído de tabus ou crenças, adotou os perfis greco-romanos para sua estereotipação psicanalítica. Seu interesse era voltado à análise do ID ou o conteúdo mais "oculto" do inconsciente humano, que não respeita nenhuma lógica, muito menos, regras morais e noção de pecado. A estas regras ele atribuiu a função que ele chamou de super-ego, plenamente reconhecida e identificada em cada um de nós.
Na Astrologia, ciência esotérica de estudo da personalidade humana, os arquétipos também recorrem a deuses (Ex: planetas Marte, Vênus) e a mitos (Ex: Signo de Leão = Leão da Neméia, primeiro trabalho de Hércules dos 12) greco-romanos para descrever, por Analogia, o comportamento originado dos instintos mais básicos do ser humano e seus devidos reflexos do incosnciente coletivo/pessoal. Mas isto já é Jung e dá mais outra resenha.....
O Bem-estar da civilização
ResponderExcluirMatei meu pai a dentadas
comi-o, provei da raiz de minha árvore
sepultei-o sob obturações gastas
mato-o a cada parco e porco dia
silencio sua boca, mordo sua língua,
selo seus ouvidos, arranco seus olhos
cumpro o meu papel de caminhante
traço o meu caminho em seu cadáver
estendido no varal que armo em meu quintal
Quem de vocês não trás às costas esse morto-vivo?
Quem, de nós que nunca nos saberemos, não exerceu o ofício de coveiro e de obstetra a cada manhã?
Sinto sua crença em minha descrença
sua coragem em meu medo
e seu pavor nos meus passos.