terça-feira, 7 de julho de 2009

A morte da canção


O músico, ensaísta e professor José Miguel Wisnik liderou, na noite de terça-feira passada, ao lado do crítico e também músico Arthur Nestrovski, um interessante debate sobre o estado atual da canção como forma de arte e referência cultural (ver mais abaixo). "A canção morreu?" é a pergunta que muitos tem se feito.


Uma das respostas a esse tipo de indagação está nas imagens do vídeo mencionado pelo Wisnik: Gil cantando de roupão no quarto do hotel, enquanto, atrás dele, cenas de telejornais e documentários vão pontuando os versos, até que uma sincronicidade ainda mais aguda, um tipo de poesia fatídica, provoca um encontro misteriosamente poderoso entre o que diz a letra e o que a TV mostra.


Bom, mas a resposta é que o vir-a-ser põe tudo em andamento e fora do nosso controle. Está além de bem e mal, embora sempre traga o mal. E é por esta razão que Nietzsche foi o galo que cantou anunciando a pós-modernidade, a falta de centro, ou os múltiplos centros, a fragmentação, a desordem, o espírito dionisíaco espalhando seu vinho desagregador para espanto de Apolo.


A garotada de pais inteligentes e bem informados geralmente gosta de Beatles - até porque o que eles fizeram durante a carreira da banda foi música para crianças, no melhor sentido. Tudo morreu e nada morreu. A canção do Gil explica de maneira involuntária o sentido das ideias dos dois pensadores. Algo passa e algo fica. Assim como nós passaremos e outros virão para ficar um tempo.


Então eu não tenho medo da morte da canção, quando (e se) estiver morta. Mas sinto medo porque vejo a canção (e tudo o que implica essa morte, inclusive boa parte da minha fundação cultural e intelectual) morrendo. É como se eu próprio estivesse morrendo.




Abaixo o debate:


"Canto para quem?

José Miguel Wisnik questiona o "fim da canção", mas diz que gênero perdeu atenção e centralidade no país

Folha de S. Paulo - 6/7/2009


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

DA REPORTAGEM LOCAL

"O título é uma pista falsa, uma provocação.


Quem acreditar em seu sentido aparente corre o risco de levar um drible", avisou o músico, ensaísta e professor José Miguel Wisnik na noite de terça-feira passada ao abrir, ao lado do crítico e também músico Arthur Nestrovski, a sessão de encerramento de um ciclo de "aulas-shows" sobre música popular brasileira. O título ardiloso ao qual se referia Wisnik é "O fim da canção".


Embora já não fosse propriamente novo, o tema do fim da canção atraiu atenções e causou certo frisson com a publicação de uma entrevista de Chico Buarque a Fernando de Barros e Silva, na Folha, em dezembro de 2004, na qual o compositor considerava a possibilidade de o gênero a que se dedica ser um fenômeno característico do século passado.


Nessa linha, a ideia do fim da canção se inscreveria num contexto de esgotamento formal e de deslocamento de sua função social, num cenário em que se modificam parâmetros técnicos, culturais e ideológicos. Não por acaso, o enunciado ecoa outros análogos, como "o fim da pintura" ou o mais amplo e polêmico "fim da história", de Francis Fukuyama.

A canção que está no centro do debate não é uma canção qualquer, mas aquela, na definição de Wisnik, "sofisticada melódica e harmonicamente, com letras densas e polissêmicas, intimamente entranhadas com a música, sílaba por sílaba, capaz de atingir e interessar grandes públicos, atravessar diferenças sociais, irradiando lirismo e crítica social".

Para o professor e crítico Lorenzo Mammì, "em geral, toda arte, quando chega a um grau determinado de maturação, começa a se interrogar sobre sua própria morte".
Ele observa que "o tema da morte da arte existe desde o Renascimento (após Michelangelo não restaria mais nada a fazer) e é central na arte moderna, desde Hegel". Mas lembra, para evitar o drible: "É uma estratégia expressiva, nunca uma morte real: significa que cada obra se coloca no limite, tensiona a tradição até um ponto extremo."

Wisnik argumenta que, embora o lugar ocupado pela canção brasileira no século passado e o tipo de atenção concentrada que ela conquistou tenham se dissipado, isso não atesta o desaparecimento ou o mero empobrecimento da canção enquanto tal.

"É uma visão simplificada, porque esses mesmos não veem a canção, quando ela está na frente do nariz. "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, lançada no ano passado, mais bela ainda no YouTube, com ele cantando sozinho num quarto, é uma límpida afirmação de que a canção universal está viva", diz. Mas ao mesmo tempo -e paradoxalmente- "o fato de que quase ninguém a reconheça é um sinal de que a canção, tal como a conhecemos, acabou".

Em 2007, no ensaio "O Sonho dos Outros", publicado em "Lendo Música" (Publifolha), Mammì referia-se a uma declaração do artista norte-americano Robert Smithson, prevendo, nos anos 1960, que as redes de signos da cultura contemporânea chegariam a uma densidade tal "que formariam uma casca lisa e uniforme, sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado".

Seria o caso da canção brasileira, cujo cânone, em seu entendimento, fecha-se num arco que vai de Ernesto Nazareth a Chico e Caetano.
Sobre a superfície sólida desse núcleo acabado poder-se-ia, agora, "correr à vontade" e já não haveria distâncias, "porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções."

O que teríamos, então, na cena contemporânea, como decorrência da "posse plena" do código da canção? Já de início uma produção que poderia ser chamada, sem viés negativo, de maneirista, na tradição do cânone. Além dela, um tipo de música que nasce nas franjas do pop, com o impacto do rap e da eletrônica, que se inclinaria, segundo Wisnik, "a uma linguagem menos travada entre música e letra, mais fluida, mais nebulosa, cheia de interstícios instrumentais ou sonoridades buscadas, como se quisesse não a atenção concentrada da tradição que veio da bossa nova e do tropicalismo mas a atenção flutuante que se ouve nos discos de Los Hermanos".
Por fim, permaneceria viva a tentativa de levar a canção ao paroxismo -"as últimas canções de Chico e Caetano me parecem ser um exemplo disso", diz Mammì.

Mas, para Wisnik, o mesmo ambiente que torna invisível -ou inaudível- a canção de Gil por ele citada não confere mais a Chico e Caetano o crédito de antes. "Não me refiro ao crédito da celebridade, que eles recebem em cotas de adulação, polêmica ou escândalo, mas ao do artista vivo", diz.

Em relação a Chico, "que se protege sabiamente da entropia reinante", parece mais fácil "não ouvi-lo no presente, mas no passado, onde ele soa mais palatável". Já sobre Caetano, "que se lança atiradamente por temperamento e que se confunde com a entropia reinante", parece mais fácil para muitos apenas "vê-lo como um narcisista frívolo".

Seja como for, é de perguntar se esse tipo de canção não estaria mesmo condenado a se tornar objeto de culto em círculos restritos, num fenômeno talvez semelhante ao que ocorre com a poesia. Lorenzo Mammì responde:

"Nas décadas de 1960 e 70, a vida foi ritmada por canções: eram objetos de consumo, mas também tinham uma importância cultural nunca alcançada antes, nem depois. Essa fase acabou, não apenas no Brasil, mas no mundo: não há novos Chicos ou Caetanos, mas também não há novos Bob Dylan ou John Lennon. Quem compõe canções, hoje, ou faz apenas entretenimento, sem outras pretensões, ou explora um patrimônio consolidado, trabalhando de certa maneira na forma da variação ou do comentário. Cada canção remete a uma quantidade de outras canções. É nesse sentido que a canção atual se aproxima da poesia: não há mais canção ingênua, como não há, já há muito tempo, poesia ingênua."

Um comentário:

  1. Creio que essa é uma discussão bem localizada, conforme destacado no texto: quem morre (e eu discordo totalmente) é a canção culta (horrível dizer-se culto, num mundo de desertos tremendos de cultura). Na verdade, acredito piamente na mudança do padrão musical que escutamos. Ora, nao temos mais HOmeros, nao temos mais Dantes, nem Shakespeare, o século de ouro da música (XVIII) parece querer dizer que nada será como antes em termos de clássicos. COnversa pra boi dormir. Parece haver uma necessidade incontrolável de se decretar a morte de tudo: a morte da literatura, do autor, da poesia, da canção, da puta que nos pariu. Discute-se o óbvio dionisíaco, morre-se para renascer com vigor. Toda perfeição é, por princípio, a decretação da morte. Ou se reinventa, ou se repete (morte) ou se é pior (morte). Um gênio como Guinga continua trabalhando a canção em altíssimo nível. Lenine é outro nome desprezado nessa matéria, Zeca Baleiro. Acho que esses são tempos de luminosa escuridão.

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